domingo, março 21, 2010

Morre lentamente



Morre lentamente quem não viaja,


quem não lê,


quem não ouve música,


quem não encontra graça em si mesmo.






Morre lentamente quem destrói o seu amor-próprio,


quem não se deixa ajudar.






Morre lentamente quem se transforma em escravo do hábito,


repetindo todos os dias os mesmos trajectos,


quem não muda de marca,


não se arrisca a vestir uma nova cor


ou não conversa com quem não conhece.






Morre lentamente quem faz da televisão o seu guru.






Morre lentamente quem evita uma paixão,


quem prefere o negro sobre o branco


e os pontos sobre os "is"


em detrimento de um redemoinho de emoções


justamente as que resgatam o brilho dos olhos, sorrisos


dos bocejos, corações aos tropeços e sentimentos.






Morre lentamente quem não vira a mesa quando está infeliz com o seu trabalho,


quem não arrisca o certo pelo incerto para ir atrás de um sonho,


quem não se permite pelo menos uma vez na vida fugir dos conselhos sensatos.






Morre lentamente, quem passa os dias queixando-se


da sua má sorte ou da chuva incessante.






Morre lentamente, quem abandona um projecto antes de iniciá-lo,


não pergunta sobre um assunto que desconhece


ou não responde quando lhe indagam sobre algo que sabe.






Pablo Neruda

Bjs Cris



sábado, março 13, 2010

Elegia a uma pequena borboleta

Como chegavas do casulo,


— inacabada seda viva —


tuas antenas — fios soltos


da trama de que eras tecida,


e teus olhos, dois grãos da noite


de onde o teu mistério surgia,






como caíste sobre o mundo


inábil, na manhã tão clara,


sem mãe, sem guia, sem conselho,


e rolavas por uma escada


como papel, penugem, poeira,


com mais sonho e silêncio que asas,






minha mão tosca te agarrou


com uma dura, inocente culpa,


e é cinza de lua teu corpo,


meus dedos, sua sepultura.


Já desfeita e ainda palpitante,


expiras sem noção nenhuma.






Ó bordado do véu do dia,


transparente anêmona aérea!


não leves meu rosto contigo:


leva o pranto que te celebra,


no olho precário em que te acabas,


meu remorso ajoelhado leva!






Choro a tua forma violada,


miraculosa, alva, divina,


criatura de pólen, de aragem,


diáfana pétala da vida!


Choro ter pesado em teu corpo


que no estame não pesaria.






Choro esta humana insuficiência:


— a confusão dos nossos olhos


— o selvagem peso do gesto,


— cegueira — ignorância — remotos


instintos súbitos — violências


que o sonho e a graça prostram mortos






Pudesse a etéreos paraísos


ascender teu leve fantasma,


e meu coração penitente


ser a rosa desabrochada


para servir-te mel e aroma,


por toda a eternidade escrava!






E as lágrimas que por ti choro


fossem o orvalho desses campos,


— os espelhos que refletissem


— vôo e silêncio — os teus encantos,


com a ternura humilde e o remorso


dos meus desacertos humanos!






Cecília Meireles
Bjs Cris